Essa é uma pergunta-chave, que precisa ser respondida com muita cautela. Todos nós já tivemos conhecimento de situações em que, em nome do discipulado, estabeleceu-se uma relação de dependência, controle e submissão cega que trouxe grandes prejuízos. Mas isso não acontece por acaso. Algumas versões de discipulado partem de uma teologia que, suprimindo o sacerdócio universal do crente, apresenta a palavra final do discipulador como a principal forma de Deus falar hoje em dia. Como batistas, nós cremos firmemente que a Escritura é o principal meio pelo qual Deus fala ao coração do ser humano, e que toda orientação que um cristão pode oferecer a outro deve estar fundamentada nela. No decorrer dos próximos capítulos, vamos deixar cada vez mais nítido que o discipulado é para gerar liberação para multiplicação, e não dependência. O nosso chamado é para fazermos discípulos que serão enviados, e não que permanecerão debaixo de nossas asas para sempre.
O alvo do discipulado é Cristo. O discipulado se trata dele. É com Ele que devemos nos parecer no final das contas. Qualquer pessoa que queira começar a fazer discípulos, mas não sendo ela mesma uma discípula de Jesus, poderá realizar muitas coisas, menos a Grande Comissão, pois a Grande Comissão trata da multiplicação de discípulos de Jesus, não de qualquer pessoa.
Apesar de tudo isso, não devemos responder à pergunta que intitula esta seção apenas sob o ponto de vista da rejeição do erro teológico. Ainda há muitos tesouros sobre o discipulado que precisamos escavar. Por mais que refutar o engano seja importante, fazer isso por si só não significa que estejamos cumprindo a Grande Comissão. A ordem de Cristo exige de nós uma atitude ativa, e não passiva. Não a cumpriremos por meio do que deixarmos de fazer (o erro), mas pelo que fizermos (o acerto). Então, nossa abordagem do fazer discípulos deve estar isenta de preconceitos que nos impeçam de compreender e praticar o que isso realmente significa.
Com isso em mente, quero propor que, se admitirmos que o Senhor Jesus nos ordenou reproduzir com outros o que Ele mesmo fez com aqueles doze homens, então a Grande Comissão nos obriga a fazer discípulos não apenas dele, mas também de nós (à medida que somos discípulos dele). Por mais paradoxal que pareça, a missão que Cristo nos entregou é para ser cumprida por meio de produzirmos os nossos próprios discípulos dele. Quando Jesus se despediu de seus discípulos e os incumbiu de ensinar novas pessoas, Ele estava nomeando todos eles como discipuladores. Desde então e até os dias de hoje, Ele não vai descer do céu para fazer novos discípulos. Agora isso compete a nós, sob o poder do Espírito Santo. Se fizermos discípulos apenas de Cristo, e não de nós, então não estaremos discipulando, pois o sujeito ativo do fazer discípulos na Grande Comissão somos nós, e não Ele.
Com tudo isso, não estamos querendo dizer que o objetivo final do discipulado é levar alguém a parecer-se conosco. Se for assim, o discipulado terá um alvo muito medíocre. A finalidade do discipulado é produzir um imitador de Cristo, o que será obtido, contudo, por meio de um processo de aperfeiçoamento gradual. Nesse processo, o discípulo começa imitando outro discípulo, porém com o objetivo de ultrapassá-lo, pois a perfeição almejada, que tem Cristo como parâmetro, sempre estará além da nossa capacidade de modelar. O referencial sempre será Cristo, mas se nós o seguimos, o discípulo poderá nos seguir.
Por que será que recusamos tanto a ideia de termos os nossos discípulos de Cristo? Uma parte da resposta já foi dada, e se refere à nossa rejeição quanto a determinados movimentos mais recentes de discipulado que destoam do padrão bíblico. Mas, antes mesmo que tais movimentos surgissem, nós também não aceitávamos a ideia de que um discípulo genuíno de Cristo pudesse ter discípulos, ainda que por meio de um relacionamento saudável teologicamente.
Nós até admitimos que o discipulado pressupõe um discipulador de um lado e um discípulo de outro, mas chamamos esse discípulo de “discipulando”, “pupilo”, “mentoreado” ou até de “catecúmeno”, menos de discípulo. Creio que a principal razão pela qual não gostamos de ter discípulos está na nossa forma histórica de enxergar o fazer discípulos apenas como uma meta (fim) da evangelização, e não como um processo (meio) de aperfeiçoamento de discípulos para a multiplicação. Vamos tentar refletir sobre isso um pouco mais. Para muitos de nós, fazer discípulos tem sido nada mais do que obter convertidos.
Por esse pensamento, quando Jesus nos deu a Grande Comissão a sua intenção seria basicamente que buscássemos pessoas perdidas para a salvação. A ênfase da missão seria na evangelização e no resultado dela. Primeiro, pregamos o evangelho e, quando uma pessoa decide aceitar Jesus como salvador, temos feito mais um discípulo dele.
Quem vê a Grande Comissão dessa forma geralmente ressalta Marcos 16.15: “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a toda criatura”, mas nem tanto Mateus 28.19: “Ide, fazei discípulos”. Quero propor chamar essa compreensão do fazer discípulos de a abordagem do bornal vazio. Bornal é a bolsa onde o semeador carrega as suas sementes, as quais vai deixando cair pelo campo a fim de que germinem por conta própria. O objetivo do semeador é voltar para a casa ao final do dia com o bornal vazio das sementes que carregou para espalhar.
Para um cristão com foco na semeadura, voltar com alguma semente não lançada significa contribuir, por omissão, para que mais uma pessoa se perca para sempre. Uma amostra dessa visão pode ser lida no impactante livro de Mark Cahill, Evangelismo: uma coisa que você não pode fazer no céu: Se eu desse uma festa de aniversário para você na qual cada convidado fosse receber 100 mil dólares em dinheiro vivo e uma Mercedes conversível, e eu lhe desse cinquenta entradas para a festa, quantas pessoas você teria nessa festa? Sem dúvida, teria cinquenta pessoas. De fato, se você percebesse que tinha uma entrada sobrando e visse uma pessoa que mora na rua, você daria a ela a entrada que estava sobrando. Isso não se parece com o que Deus tem feito por nós? Ele nos tem dado um bolso cheio de entradas, e é responsabilidade nossa entregar um convite após o outro para um lugar chamado céu. (…) Você tem ideia de quantos crentes vão morrer e estar diante de Deus com um bolso cheio de entradas para o céu? Você tinha todas essas entradas para o céu. Você poderia ter dado essas entradas a qualquer pessoa que quisesse, mas morreu com o bolso cheio delas.
Com certeza, existe algo de bíblico nesse entendimento. Paulo parece pensar assim ao insistir com Timóteo: “Eu te exorto diante de Deus e de Cristo Jesus, que há de julgar os vivos e os mortos, pela sua vinda e pelo seu reino, prega a palavra, insiste a tempo e fora de tempo, aconselha, repreende e exorta com toda paciência e ensino” (2Tm 4.1,2). Nesse texto, o apóstolo coloca sob perspectiva o juízo de Deus a que todos os homens estariam sujeitos, inclusive o próprio evangelista quanto à sua diligência no trabalho. Poucos versículos depois (v. 5), ele apela ao jovem pastor: “Faze a obra de um evangelista”. Em outra passagem, ele diz: “Sou devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes. (…) Porque não me envergonho do evangelho, pois é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1.14,16). Ainda: “Desse modo, esforcei-me por anunciar o evangelho não onde Cristo já havia sido proclamado (…)” (Rm 15.20). Para não citar outras passagens, como Rm 10.10-17, em que ele sustenta a necessidade de proclamação do evangelho a todas as pessoas, pois “a fé vem pelo ouvir”. Para Paulo, a pregação do evangelho era sempre necessária e emergencial.
Sem dúvida, a nossa missão inclui anunciar Jesus Cristo a todas as pessoas ao redor do mundo. Ele mesmo disse, no que poderíamos chamar de a Grande Comissão no Evangelho de Lucas: “Está escrito que o Cristo sofreria, e ao terceiro dia ressuscitaria dentre os mortos; e que em seu nome se pregaria o arrependimento para perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém” (Lc 24.46,47). Os evangelistas da abordagem do bornal vazio têm trazido uma enorme contribuição no sentido de nos despertar para a obra de evangelização local e mundial. Eles são muito críticos quanto à omissão da igreja no cumprimento da Grande Comissão, ainda que a tenham particularmente à luz de Marcos 16.15 e Lucas 24.46 e 47. O chamado à evangelização é uma voz constante a nos incomodar para que saiamos do nosso conforto atrás de pessoas a fim de lhes anunciar o evangelho.
A questão não é se a nossa missão inclui semear o evangelho, mas se ela se resume a isso. A Grande Comissão termina quando esvaziamos o saco de sementes? Temo dizer que não. Deixe-me demonstrar o que tudo isso tem a ver com a pergunta: “Nós fazemos discípulos de quem?”. Bem, se nossa visão de fazer discípulos se limita a obter convertidos, então os novos discípulos não têm a necessidade de se relacionar com mais ninguém além de Jesus. Poderíamos fazer discípulos até pelo rádio ou pela televisão.
Tudo bem que podemos evangelizar em um encontro eventual e ninguém discute a validade dos meios de comunicação para propagação do evangelho. Mas fazer discípulos é muito mais do que isso; não é algo que se faça a distância. Como dizia Dawson Trotman, “você pode levar uma pessoa a Cristo em entre vinte minutos e duas horas, mas leva vinte semanas a dois anos para dar-lhe o acompanhamento adequado”.
“Olhe para Cristo e não para mim” é o que costumamos dizer. É claro que Cristo é o nosso modelo maior, o nosso alvo. Porém, algumas vezes usamos essa frase só para nos esquivar de discipular alguém que provavelmente quer ver em nós um exemplo do que é ser um verdadeiro discípulo. Até estranhamos as reivindicações paulinas de que os irmãos deveriam ser seus imitadores. Ficamos a ponto de considerá-las arrogantes. Precisamos fazer discípulos de Jesus, sim, no sentido de levar pessoas ao arrependimento e à fé nele a fim de que sejam salvas, mas também precisamos fazer discípulos de nós, o que significa desenvolver com elas relacionamentos de cuidado, ensino e aperfeiçoamento, para que também essas pessoas sejam levadas à multiplicação. Isso é o que chamamos de relacionamento discipulador.
Não poderemos desenvolver esse tipo de relacionamento se não estivermos abertos a ter discípulos. É da essência do discipulado seguir alguém. Todo discípulo precisa de um discipulador por perto, alguém que lhe sirva de referencial, de modelo. Ao plantar o discipulado como núcleo da Grande Comissão em Mateus 28.18-20, Jesus foi intencional em demonstrar que o caminho para o aperfeiçoamento do discípulo passa por aprender com outro discípulo.
A Grande Comissão é algo que se implementa via relacionamentos. Ela acontece pela influência de um discípulo em outro, pessoa a pessoa, geração a geração, até chegar a todas as nações. Quanto à salvação, o discípulo é de Cristo, pois quem salva é Ele. Quanto ao relacionamento discipulador, o discípulo é nosso, pois quem discipula somos nós. Não se choque com os pronomes. Eles dão uma falsa ideia de posse. Mas o sentido não é esse. Na verdade, eu entendo e respeito a sua opção de não chamar os seus discípulos de seus, se for o caso. Você pode chamá-los de “discipulandos”, por exemplo. Contudo, certifique-se de que esteja desenvolvendo com eles o relacionamento discipulador conforme modelado por Jesus. Desenvolveremos melhor essa ideia quando cuidarmos de como era desenvolvido o discipulado nos dias do Novo Testamento e como ele pode acontecer hoje.
Por Diogo Carvalho – Texto Extraído do livro “Relacionamento Discipulador: uma teologia da vida discipular” do Pr. Diogo Carvalho publicado por Missões Nacionais. Falar em discipulado não é novidade. Mas compreender a perspectiva relacional como essência do discipulado é um retorno ao modelo discipulador usado por Jesus. Acessando este link http://migre.me/tt2Ze você pode adquirir este e outros materiais da visão de Igreja Multiplicadora.